Estórias
A gaiola vazia
(livro de contos)
A manada
(Menção honrosa na Revista Literária da UFMG – 1970)
Baios, argéis, fubás, moiros, pampas, pombos, pinhões, raudões, ruços, salgos, xarás, zainos, zarcos, alazães, alfários, amames, andrinos, bragados, cambraias, cascalvos, cebrunos, crinalvos, faceiros, fouveiros, façalvos, gaiados, gaviões, isabéis, lobeiros, lobunos, macacos, melados, milflores, morzelos, nevados, olhalvos, oveiros, paiseiros, picaços, quatralvos, pigarços, rabicãos, rabuchos, rodados, rosilhos, ruanos, rucilhos, sabinos, tesouras, tordilhos, toucados, velhoris, zabelos, almarados, amarilhos, azulegos, bebe-em-brancos, bico-brancos, bugiados, cabo-negros, canipretos, celheados, crinipretos, debruados, douradilhos, estreleiros, fronta-bertos, gargantilhos, gateados, malacaras, mascarados, olhizarcos, rabeadores, rubicanos, sapirocas, topetudos, xairelados, amelroados, atavanados, atiçonados, entrepelados, espadaúdos, interpolados, ventrilavados…
Porque enlouqueci, jamais poderei explicar.

Fazenda do Bálsamo
(Publicado em 50 Contos em Tons de Sépia – SESC – Setembro de 2013)
A primeira vez que fomos lá eu era tenra criança, as recordações dessa viagem se misturaram com os sonhos férteis da infância, não saberia agora dizer o que foi de fato vivido. Mas as emoções que ficaram foram tão intensas que aquele lugar pareceu-me desde então fazer parte de nossa casa, de nosso lar.

O apego das pessoas que lá moravam aos costumes e práticas mais antigos fazia dali uma espécie de rememoração viva de um tempo já passado, livre, de certo modo, do que chamamos de progresso. O casarão centenário, com paredes de taipa, alicerces de pedra, telhado sem forro e piso de longas tábuas suspensas sobre o porão. Imensas portas, janelas trancadas com tramelas, quartos que se comunicavam uns com outros, permitindo circular por eles e sair por outro lado. Nas camas, muito altas, colchões de palha de milho, que alguém zelosamente vinha todo dia afofar e quando deitávamos afundávamos neles. À noite, por sobre as altas paredes, ainda se podia falar alguma coisa com os que estavam nos outros aposentos.
(CliqueO pássaro-preto
(Publicado em 50 Contos em Tons de Sépia – SESC – Setembro de 2013)
“… e os pássaros-pretos, palhaços, na brincação.”
João Guimarães Rosa
Os pais de Isaías já haviam cumprido seu papel na educação dos filhos. Ele, por último, estava prestes a finalizar os estudos. O casal viajava para o interior com frequência, onde pretendia morar definitivamente. Mas os dois não demoravam muito por lá, como se quisessem demonstrar que não haviam abandonado Isaías. O rapaz se acostumava a esse regime de independência, tomando conta de si mesmo. E também prestando atenção a certas coisas na casa que nem imaginava existirem quando os pais estavam presentes. Por fim, havia a tarefa de cuidar do pássaro-preto. O pai gostava muito dele e lhe dedicava o mesmo carinho que aos familiares. Era o último dos muitos passarinhos que tivera. Isaías um dia percebeu que o pai não o havia levado para o interior, a fim de não dar a impressão de que estava indo definitivamente. A permanência do pássaro-preto substituía de alguma forma a presença dos pais. A ave alegrava a casa com seus trinados. Lá da área de serviço, percebia quando Isaías chegava. Mesmo que já fosse tarde, queria que o rapaz se aproximasse e coçasse sua cabeça.
(CliqueHá pouco tempo Isaías tinha conhecido Suzana e dividia entre ela e Vicente, seu melhor amigo, o tempo que sobrava para o lazer. Vicente era sistemático, às vezes parecia manifestar um pouco de transtorno obsessivo, mas Isaías via isso com naturalidade, até admirava a obstinação com que o amigo se dedicava a certas coisas. Como se atribuísse uma importância exagerada a situações comuns da vida. Fazia-o perceber em muitas delas detalhes que nunca haviam chamado sua atenção. Isaías se apaixonara por Suzana de súbito e dedicava-se a conquistá-la. Vicente era mais experiente em coisas de namoro e era para o amigo um bom conselheiro.
Diariamente, ou pelo menos em dias alternados, Isaías limpava a gaiola do pássaro-preto e repunha comida e água. A ave vinha até perto da grade, abaixando a cabeça e eriçando as penas, como se pedisse carinho. Isaías lembrava-se da voz do pai brincando com o animal, tratando-o como se fosse uma criança. Ainda não tivera um neto, embora os filhos mais velhos já estivessem casados. Enquanto Isaías reabastecia os recipientes, a gaiola ficava aberta. O pássaro-preto permanecia na portinhola, esperando que os dedos do rapaz viessem afagá-lo.
Vicente insistia que Suzana estava testando Isaías, querendo saber o quanto ele era capaz de se apaixonar por ela e galanteá-la. E dizia que ele não devia poupar suas emoções, mas, sim, deixá-las fluírem com toda sinceridade. Os encontros de Isaías com Suzana começaram por acaso, na faculdade. Cada um se interessou apenas pelas conversas do outro. Suzana tinha um namorado. Ela manifestava um pouco das características de Vicente, fazendo análises inesperadas de acontecimentos comuns.
As conversas de Isaías com Vicente eram às vezes tão animadas, estimuladas pela cerveja no bar, que eles chegavam a combinar que cada um teria um tempo cronometrado para falar! Como se participassem de uma assembleia. Questões de política, de história, de costumes do tempo. De músicas, religião, amor.
Vicente disse a Isaías que alguns colegas estavam planejando passar o feriado em uma ilha e o convidou para ir junto. Suzana provavelmente também iria. Isaías aceitou o convite, mas disse que ficaria apenas um dia, pois teria provas na semana seguinte. A ilha aprazia para uma boa conversa, como Isaías e Suzana gostavam. E agora com a inspiração da paisagem, o tempo sem compromisso, o passear pela praia que parecia não ter fim, tudo soava perfeito! No barco Vicente conheceu uma garota. Logo se entenderam. Um tanto porque nenhum dos dois queria passar aqueles dias sem a intimidade de uma companhia.
Suzana estava linda. A semi-nudez dos banhos de mar transparecia também em seu jeito de ser, seu olhar, seu modo de falar, de se entregar. Vicente veio com sua nova namorada, de mãos dadas, propondo brincadeiras. Queria aproximar Isaías de Suzana. Quando eles se conheceram e se tornaram amigos, não tinham a intenção de um dia serem nada além disso. Então havia certa imposição de que deveriam continuar a cultivar apenas a amizade. Conversavam muito, mas nessas conversas parecia não haver muita oportunidade para a manifestação de sentimentos, de uma declaração de amor. Vicente deve ter percebido isso. Bastava fazê-los se darem as mãos e deixar que o tato falasse por eles. Por isso veio com aquelas brincadeiras. Por fim, Isaías e Suzana foram sozinhos passear pela praia de mãos dadas. As ondas lavavam seus pés. Isaías trazia a mão de Suzana junto ao seu rosto para beijá-la. Suzana devolvia um sorriso. O mar emprestava sua perpetuidade a esses momentos.
Na outra manhã, Isaías e Suzana se viam com outros olhos, mesmo não tendo nenhum deles declarado seu amor. As manifestações de carinho que trocavam iam dizendo isso. A praia, que no primeiro dia parecia tão extensa, tornou-se pequena para o tanto que a percorreram, entretidos com seus afagos e com tudo que por ali iam vendo; Suzana transformando cada pequeno objeto encontrado no percurso em símbolos de sua ficção. A solidão da praia os deixou mais próximos. Só às vezes bem longe viam a silhueta de alguém.
No terceiro dia da viagem, Vicente e Isaías acordaram bem cedo para ir à praia ver o nascer do sol. Ficaram sentados na areia admirados com cada instante daquela manhã que surgia: a transformação das cores, as ondas festejando a chegada do sol. Depois ali mesmo dormiram um resto de sono. Suzana não estava no café da manhã, onde haviam combinado de se encontrar. Nem veio para o almoço. Vicente percebeu a intranquilidade de Isaías e propôs um passeio com ele e com Flávia na praia. Isaías notou que havia um incômodo, como se Vicente agora não quisesse a aproximação dele com Suzana. Por que não ir à pousada onde ela estava, para saber o que havia acontecido? Mas Isaías aceitou o convite para o passeio. Talvez Suzana estivesse indisposta por algum motivo, querendo um pouco de solidão.
À tardinha Isaías foi à praia para um último banho. A água reservava o calor do fim do verão, contrastando com o vento fresco que soprava do mar. Depois, deitou-se na areia e ficou contemplando o azul já esmaecido do céu. Até que ouviu a voz de Suzana. Ela passou conversando com seu ex-namorado. Seguiram pela extensão da praia. Não se tocavam, apenas caminhavam lado a lado. Isaías sentiu uma ponta de ciúme. Por que ela não o avisou? Teve um ímpeto de ir embora. Voltar imediatamente para casa. E aí se lembrou, então, do pássaro-preto! Esquecera-se dele! Tinha planejado ficar na ilha apenas um dia, mas a devoção a Suzana o fizera permanecer mais uns dias. O pássaro-preto ainda teria comida? Teria água?
Isaías voltou correndo para a pousada. Nesse horário não havia mais o serviço dos barcos. Apenas em situações de urgência poderia ser solicitado o socorro do corpo de bombeiros. Era, sim, uma questão de vida ou morte. Mas Isaías não tinha como explicar isso aos policiais. O pai brincando com o pássaro-preto, como se fosse seu neto. A ave apresentando a cabeça para um carinho, obediente em sua prisão. Seu canto forte e decidido chamando Isaías quando ele chegava. A comida e a água providas com tanto zelo. O símbolo da saudade dos pais. Suzana teria decidido voltar com o ex-namorado? Ela parecia tão feliz com Isaías. Como se ele representasse para ela a recuperação de uma desilusão. Devia ter deixado a porta da gaiola aberta. Assim, ele teria a chance de fugir, de procurar outro destino. Isaías partiu sozinho para o continente, no primeiro momento da manhã.
Quando abriu a porta de casa, o pássaro-preto não cantou. Isaías abriu e fechou a porta novamente, batendo-a bem forte. Nenhum barulho. Recolhida a um canto da gaiola, a ave repousava inerte. Isaías pegou o pássaro e o levou para a sala. Com um conta-gotas foi lhe oferecendo água, até que o animal começou a se mexer um pouco. O resto do dia foi dedicado a essa tarefa de reanimação.
Na segunda-feira, Vicente ligou. Disse que o ex-namorado de Suzana havia ido à ilha sem avisar, talvez querendo reatar com ela. Mas Suzana certamente o tinha recebido apenas por gentileza. Isaías estava ferido, magoado. Ela deveria ter-lhe dado uma satisfação. O pássaro-preto já havia bebido água e se alimentado, mas continuava amuado na gaiola. Passados uns dias, Vicente avisou por telefone que as fotos que havia tirado na ilha já estavam prontas. E que gostaria de mostrá-las para ele, Suzana e Flávia. Isaías agradeceu o convite e ficou de pensar se iria. A mágoa ainda persistia. Logo, chegou uma carta dos pais. Eles estavam com saudades e em breve retornariam. Que bom que voltassem logo, assim quem sabe o pássaro-preto se animaria. Os dois ali juntos remoendo a mesma saudade.
Na noite do encontro com Vicente, Isaías estava deitado no sofá, abandonado à própria desilusão. Havia decidido que não sairia de casa. Colocou umas músicas para tocar, entre elas uma que o fazia lembrar-se de Suzana. Tão logo a canção se iniciou, o pássaro-preto passou a cantar! Isaías correu para vê-lo. Ele estava no poleiro e ensaiou um rebaixar de cabeça, eriçando as penas. Então, o rapaz percebeu que, se não tivesse visto Suzana com o ex-namorado, não retornaria a tempo de salvá-lo. Era uma noite muito agradável, de lua cheia. Um vento fresco, já anunciando a chegada do outono, convidava a sair, passear, ver os amigos, namorar…